Alfabetização

Autor: Carlos Scolari
Link original: http://www.modernclicks.net/intdsgn_scolari1.html
Tradução: Carlos André Gonçalves
e-mail/msn: candre.cuca@gmail.com
Traduzido em: Fev/2008
Reduzir a efetividade de um site à sua “usabilidade” – sobretudo se a compreendemos em termos puramente quantitativos – pode chegar a ser um erro muito mais grave do que não respeitar alguns dos princípios sagrados estabelecidos por Jakob Nielsen em seu clássico "Designing Web Usability" (2000).

Onde está o botão?
Recordemos um pouco de história. As primeiras pesquisas sobre a usabilidade dos dispositivos de interação não nasceram no campo da informática, mas sim, em um setor distante das interfaces digitais. As cabines de pilotagem dos grandes aviões. Esses trabalhos pioneiros desenvolveram metodologias e modelos teóricos para tratar e explicar os “incompreensíveis” comportamentos dos pilotos, sobretudo durante as situações de emergência. Quantas vidas poderiam ter sido salvas se o botão estivesse em um lugar acessível? Quantos acidentes poderiam ter sidos evitados se o indicador de altitude estivesse um pouco mais legível? Quanto dinheiro poderia ter sido economizado pelas grandes companhias se a seqüência de comandos para desligar uma turbina incendiada fosse coerente?

Os estudos de usabilidade de softwares – que se desenvolveram especialmente nos anos 80 – traduziram uma boa parte dos modelos e metodologias desde o quadro de comandos dos jumbos até as telas interativas. Os objetivos destas pesquisas eram aperfeiçoar a utilização de um software, evitando que o operador divagasse pela interface realizando operações inúteis ou perdendo tempo tentando entender algum comando inexplicável. Um estudo de usabilidade se ocupava, por exemplo, de identificar seqüências de interação inutilmente grandes e incoerentes, ou evitar becos sem saída que obrigavam o operador a revisar seus passos. A solução desses pequenos e aparentemente insignificantes problemas, multiplicada por milhares de empregados (por exemplo, em um call-center telefônico ou em uma grande corporação com milhares de terminais), poderia levar uma empresa a economizar milhões de dólares.

Essa tradição dos estudos sobre usabilidade, que se inspira em uma metodologia de análises quantitativas e cronométricas - puro taylorismo digital – dificilmente pode se aplicar à web. A rede não é somente um instrumento de produção, é também um ambiente de inteiração e comunicação. Por um lado, se o software mantém ainda uma ligação remota com a realidade das cabines de pilotagem, a Rede digital assume e constituí uma dimensão totalmente diferente.
Ninguém navega dentro de um cockpit nem se submerge dentro de um software. Os programas de informática estão para a cabine de um piloto como a Internet está para todo o sistema aeroportuário mundial.

No entanto, definir a Rede como um ambiente de interação e comunicação não basta. Se existe uma realidade comum que os atravessa, nem todos os sites são iguais ou podem ser pesquisados aplicando as mesmas metodologias de análises. Em certos casos os princípios de usabilidade de Jakob Nielsen são “usáveis” e deveriam orientar toda a produção de um site: por exemplo, nos catálogos online com milhares de produtos ou em sites que oferecerem grandes quantidades de informação (buscadores e portais). Quando o usuário busca dados específicos ou deve mover-se entre grandes massas de informação, os conselhos de Nielsen são importantes e merecem ser escutados.

Mas não podemos esquecer que nem todos os navegantes da Rede buscam informação ou produtos durante todo o tempo. A Rede é usada, cada vez mais, para comunicar, para jogar ou para compartilhar com outros usuários experiências do tipo sociais. Para projetar espaços que permitam uma participação ativa dos usuários nesses processos, os princípios de usabilidade não bastam. As metodologias de análises tradicionais, aplicadas na avaliação desses tipos de experiências, demonstram todos os seus limites.

Arquitetura da interação
Vejamos a questão em termos arquitetônicos. Tal como o entende Nielsen – e aplicada uma metáfora espacial frente a um universo discursivo digital – a usabilidade se reduz a uma espécie de “superação das barreiras arquitetônicas”: um site usual é aquele que facilita a sua navegação e nos permite chegar rapidamente à informação que buscamos. O site ideal de Nielsen seria construído somente com palavras. Nada de imagens e nem animações: a tecnologia Flash, como escreveu Nielsen em sua coluna Alertbox, é errada em 99%. O máximo da usabilidade, sempre segundo Nielsen, se alcança quando a relação entre superfície dedicada à navegação e superfície dedicada ao conteúdo é de 20/80.

No entanto, se um edifício não oferecer barreiras arquitetônicas, não significa que será uma construção bem projetada ou que será coerente do ponto de vista comunicativo. As rampas para as cadeiras de rodas ou os banheiros para deficientes não são suficientes para garantir uma experiência interativa total. Pensemos em um centro comercial: é evidente que as rampas para deficientes ou os elevadores contribuem para a criação de um espaço facilmente “navegável”. Mas há algo mais.

Um centro comercial pode apresentar uma estrutura sem barreiras para a circulação, mas ser totalmente incoerente ou contraditório do ponto de vista de sua comunicação. Um ambiente bem projetado, por exemplo, deve propor boas historias (compreendidas como percursos espaciais) que conectem entre si os diferentes lugares que o compõe. Voltemos a nosso centro comercial: a distribuição dos espaços em núcleos temáticos – como as “praças de alimentação” ou as áreas dedicadas para descanso – são fundamentais do ponto de vista da função do espaço.

Vamos nos deter em alguns dos locais que compõe nosso centro comercial. Que diferença existe entre uma loja da Benneton ou da The Body Shop, e outros negócios que vendem roupas ou cosméticos ecológicos? A inexistência de barreiras arquitetônicas? A facilidade de circulação interna? Ou uma concepção global da comunicação que aponta para a criação de um pequeno mundo (Eco, 1990) que envolve o cliente com um universo de valores (multiculturalidade e igualitarismo no caso da Benetton, ecologia e reciclagem da The Body Shop)?

Como se refletem estes elementos na Rede digital? Vejamos um exemplo gritante. Há alguns anos uma companhia aérea americana, cuja campanha publicitária girava em torno do conceito de “liberdade”, criou um site em que a página se abria com um formulário – por certo, bem projetado segundo os princípios da usabilidade – que o usuário devia preencher para poder entrar no site. Para participar de uma experiência imersiva – como deveria acontecer na Rede – não basta criar sites usuais: deve-se projetar em termos globais, pensando não apenas na facilidade das microinterações, mas considerando a experiência interativa total. Um site, repetimos novamente, pode ser muito usual, mas estar totalmente em contradição com a imagem que a empresa ou a instituição pretende construir.
Poderia inclusive dizer que um site, diferentemente de outros canais tradicionais, não é somente outro meio para construir a imagem da marca: um site é branding.

Flash: às vezes bom, às vezes mal
Retomemos a questão das animações em Flash. É conhecida a advertência de Jakob Nielsen ao uso deste programa de animação. Se levássemos em conta Nielsen, a Rede seria um lugar muito mais usual, mas seria mais feio e triste. Se seguíssemos as regras de inovação tecnológica, a Rede terminaria sendo um grande espetáculo de fogos de artifício... em câmera lenta.

Com o Flash está acontecendo o mesmo que aconteceu com a tecnologia VRML há alguns anos: todos os sites parecem obrigados a introduzi-lo. Se em 1997-98 os sites mais avançados deviam incorporar ambientes tridimensionais – por exemplo as universidade americanas apresentavam seus campus usando tecnologia VRML em vez de utilizar um bom mapa bidimensional – hoje a solução para todos os problemas de comunicação passaria aparentemente pelo Flash.

Não é a primeira vez que uma tecnologia impõe um padrão estético aos desenvolvedores e projetistas. De certa forma se repete uma história conhecida: assim como a gráfica complexa e estratificada que David Siegel propunha em seu clássico “Web Killer Sites” (1996) era filha dos níveis de Photoshop, e a linguagem VRML impôs os ambientes tridimensionais na Rede, a mania por animações deriva diretamente das possibilidades que oferece o programa da Macromedia.

Resulta em uma experiência interessante abrir um livro de desenho de webs de alguns anos e visitar novamente esses sites que então eram considerados a vanguarda da projeção digital. (alguns pelo estilo gráfico avançado, outros pela presença de ambientes de interação em formato VRML, etc.): os que não desapareceram foram convertidos em portais estilo Yahoo!. Se há cinco anos seguia-se a moda Siegel, hoje todos são discípulos do estilo Nielsen.

Em tempo: às vezes as animações realizadas com Flash se demonstram indispensáveis para a criação de um ambiente de comunicação dinâmico ou de um pequeno mundo de interações (um exemplo interessante está em Look and Feel).
Em outros casos, o uso indiscriminado deste programa não apenas limita a interação – fazendo enojar o profeta dinamarquês – mas, além disso, desorienta o usuário, guiando-o há uma função de espaço incoerente com os objetivos de comunicação do site. Um exemplo evidente de utilização do Flash puramente para impressionar são as splash-screen animadas, simples páginas de apresentação que – na maior parte dos casos – não agregam nenhum tipo de informação nem enriquecem a experiência interativa do usuário.

Além da usabilidade: a dimensão narrativa
Mais acima falamos da necessidade de contar boas histórias – através de uma correta articulação das seqüências interativas e dos núcleos temáticos – para melhorar a função dos espaços virtuais. Também mencionamos a possibilidade de criar pequenos mundos interativos para oferecer ao usuário uma experiência de imersão total e distante das lógicas instrumentais. É evidente que todos esses conceitos nos conduzem ao terreno da narrativa.

As vias onde se cruzam a narrativa e a interatividade são infinitas. As encontramos nos MUD e nos corredores de Doom, reaparecem nas desoladas ilhas de Riven e afloram uma e outra vez em nossa linguagem cotidiana: Por acaso não navegamos na Rede e exploramos um site em busca de informações? O que é a interação com os computadores senão mais um processo que desenvolve temporariamente, no qual um sujeito deve alcançar um objetivo (modificar uma imagem, escrever um texto, trocar mensagens com um colega, vencer um rival, encontrar uma informação na Rede) manipulando um ou vários instrumentos?
Desde essa perspectiva, a interação com os computadores reforça um esquema básico da fábula assim como foi apresentado por Vladimir Propp em 1928 na sua Morfologia Del cuento (1977): o príncipe, para salvar a princesa, deve vencer o dragão usando a espada mágica.

Se pensarmos na interação (não apenas dentro de um videogame ou na web, mas todas as interações, inclusive com os objetos reais) como uma narração, a leitura destes processos de intercâmbio se enriquece com novas perspectivas. Diante de tanta ideologia da usabilidade – que propõe metodologias de pesquisa com inspiração taylorista, exclusivamente quantitativas e de excelentemente cronométricas – talvez tenha chegando o momento de abrir o campo a novos enfoques, mais próximos o da tradição humanística e menos preocupados em medir a performance do usuário diante da tela.

Uma pesquisa embasada em termos narrativos não se preocupa tanto pelos tempos de interação ou pela percentagem da tela dedicada ao conteúdo, e se pergunta, por exemplo, pelo modelo de usuário implícito na interface, os ritmos que a interface impõe à interação ou as oposições que tornam significante um espaço virtual. Vejamos rapidamente algumas destas problemáticas que se localizam no cruzamento entre interação e narrativa:

* Usuário implícito: cada produto comunicacional (texto escrito, programa de televisão, fotografia, um longa metragem, pintura, etc.) contém em seu interior um leitor implícito. Apenas se o leitor real se reconhece nesta figura virtual o intercâmbio comunicacional pode começar. O mesmo acontece nas interfaces digitais: cada site contém uma simulação (ou várias) de usuário. Não está dito que esta simulação de usuário coincida com o usuário potencial do site; é quase normal encontrar sites dedicados “ao grande público” que exige competências de navegação que se encontram apenas nos usuários profissionais com vários anos de experiência.

* Projetista implícito: cada interface contém, além disso, um projetista implícito. Esta simulação do projetista – que não coincide com o projetista real da interface – é o sujeito “que fala” dentro do ambiente de interação. Como vimos, muitas empresas ou instituições “falam coisas” em suas campanhas de publicidade que terminam sendo traduzidas de forma errada quando passam a um ambiente interativo. Muitas vezes a interface, como no caso da companhia aérea, através de uma interação errada termina absorvendo os valores contrários que a instituição ou empresa tenta construir.

* Ritmo (espaços de passagem/espaços de permanência): a gestão dos tempos de interação é fundamental para a criação das seqüências interativas e a função dos espaços virtuais. Certos sites devem ser projetados para ser um lugar de rápida passagem (por exemplo, os buscadores), outros devem tratar de segurar os visitantes oferecendo a maior quantidade de serviços e informações personalizadas possíveis (por exemplo, os portais). Esta mesma dinâmica entre lugares de passagem e lugares de permanência se repete dentro de um mesmo site: a página principal quando bem projetada, é um lugar de passagem que conduz a outras páginas ou ambientes onde o usuário poderá ficar mais tempo (lugares de permanência).

* Espaços abertos/espaços fechados: esta tensão entre espaços abertos (a entrada de um site ou de um portal), no qual qualquer navegante pode entrar, e espaços fechados (por exemplo, as páginas nas quais o acesso se dá apenas com uma senha) ocupam um lugar central no enfoque narrativo da interação. Esta problemática surge de maneira evidente nos sites dedicados ao comércio eletrônico: como fazer para que um usuário experimente a sensação de haver entrado em um lugar seguro, onde deverá deixar seus dados pessoais e o número de seu cartão de crédito fora de olhares indiscretos?
Em muitos sites este espaço é quase imperceptível; em outros, projetados com uma maior atenção ao imaginário espacial, se cria um ambiente ou zona de transição que coloca em evidência a diferença entre o espaço aberto (público) e o espaço fechado (privado).

* Mundos narrativos: se analisarmos as experiência de interação como se fossem narrações, podem-se estabelecer interessantes comparações entre os mundos narrativos online e os imaginários de marca. Com o surgimento dos meios digitais os mundos narrativos não se constroem exclusivamente por meio de elementos cromáticos (o logotipo), um conjunto de imagens (as fotografias de Olivero Toscani) o uso de certo tipo de madeira (a madeira verde do The Body Shop ou o plástico do mundo dos relógios Swatch): em um ambiente digital a interação constitui um dos elementos fundamentais do conjunto de comunicação.

A articulação de todos esses componentes termina por gerar um mundo narrativo, que por sua vez segue encarnando uma série de valores. Como já vimos, uma empresa ou instituição pode construir sua imagem nos meios de comunicação de uma forma e desvirtuar essa mesma imagem na sua apresentação online. A situação ideal é aquela onde, além das características de cada suporte, se cria uma continuidade entre todos os espaços simbólicos.

* Construção de novas gramáticas de interação: nos últimos anos tem se insistido muito na necessidade de construir sites fáceis de usar. Os profetas da usabilidade extrema normalmente esquecem que a dificuldade no uso de um dispositivo pode ser parte de uma experiência interativa global, um convite à exploração desse espaço e ao descobrimento de sua gramática de interação. Essa é a lógica que rege os melhores videogames labirínticos, como Myst ou Riven; se trata de lugares virtuais onde o usuário deve descobrir a interface e reconstruir a gramática que rege os processos de interação. Os projetistas de sites deveriam recuperar esta e outras experiências que se encontram na antípoda da ideologia da usabilidade.

Por que falamos de uma ideologia da usabilidade? Além de todos os discursos dedicados ao foco no usuário (user-centered design), os profetas da usabilidade terminam projetando interfaces para um único usuário implícito: se trata de um navegante esquizofrênico, sempre apressado e com pouco tempo à disposição. A Rede – repetimos mais uma vez – não é um instrumento de produção, mas um ambiente de comunicação e interação. A internet é cada vez mais usada para comunicar, para jogar ou para compartilhar com outros usuários experiências comunitárias. O estudo quantitativo e cronométrico pode ser de utilidade em uma primeira fase de análises, mas torna-se evidente que, para entender realmente o que se passa na frente das telas interativas, há que se apoiar em outros modelos e teorias.


Bibliografia

Eco, Umberto
Los límites de la interpretación, Editorial Lumen, Barcelona, 1992
(ed. orig. "I limiti dell'interpretazione", Bompiani, Milán, 1990)

Nielsen, Jakob
"Usabilidad. Diseño de sitios Web", Prentice Hall, 2000 (ed. orig. "Designing Web Usability", New Riders, Indianápolis, 2000

Propp, Vladimir
"Morfología del cuento", Fundamentos, Madrid, 1977

* Uma primeira versão deste artigo foi publicas no site Interlink Headline News
Número 2216 de 23 de Fevereiro de 2001

http://www.ilhn.com.ar